Todos
os anos, mais ou menos por esta altura, há uma alma patriótica que
desenterra não se sabe bem de onde, com a melhor das intenções o
disparate musicológico absoluto da atribuição do conhecido hino de Natal
"Adeste fideles" ao nosso Rei D. João IV, o que desperta logo uma
corrente interminável de "likes" de orgulho nacional. Ano sim, ano não, a
irritação profissional pela perpetuação desta atoarda
faz-me tentar desmentir como posso o boato (tanto mais que a figura de
D. João IV, sobre quem trabalho há quase quarenta anos, nos deve merecer
a todos o maior respeito pelo seu papel inimitável de protector da
Música e dos músicos portugueses do seu tempo, e não precisa para tal
desta atribuição abusiva de paternidade musical). Aqui fica, pois, mais
uma vez, o devido esclarecimento, embora sabendo que estarei
provavelmente a pregar no deserto, porque a mística do mito tem sempre
mais força do que qualquer argumento racional.
1)
O “Adeste fideles” é uma obra composta em harmonia funcional
inteiramente tonal, com acompanhamento de baixo contínuo, num estilo
absolutamente incompatível com a prática musical do tempo de D. João IV,
que morreu em 1656. Atribui-lo ao nosso Rei ou a qualquer compositor
europeu da sua geração seria sensivelmente o mesmo disparate do que
dizer que Bach poderia ter escrito da “Nona Sinfonia” de Beethoven ou
que Brahms poderia ter sido o autor da “Sagração da Primavera”…
2) Como se isto não bastasse, o próprio texto “Adeste fideles” não consta de quaisquer livros litúrgicos antes do século XVIII, até à sua edição por John Francis Wade no início da década de 1740, embora possa ter sido baseado, remotamente, num texto medieval.
Estes dois argumentos deveriam ser suficientes para qualquer pessoa que saiba alguma coisa de Música do século XVII. Mas deve referir-se ainda que:
2) Como se isto não bastasse, o próprio texto “Adeste fideles” não consta de quaisquer livros litúrgicos antes do século XVIII, até à sua edição por John Francis Wade no início da década de 1740, embora possa ter sido baseado, remotamente, num texto medieval.
Estes dois argumentos deveriam ser suficientes para qualquer pessoa que saiba alguma coisa de Música do século XVII. Mas deve referir-se ainda que:
3)
É absolutamente falso que existam em Vila Viçosa quaisquer manuscritos
do início do século XVII – ou de qualquer outro período, por sinal, até
pelo menos meados do século XX – com esta obra. Trata-se de uma invenção
surrealista de quem escreveu o artigo “Adeste fideles” da Wikipedia
portuguesa.
4) Nenhuma das várias fontes contemporâneas de D. João IV que enumeram detalhadamente as suas composições refere que ele tenha composto qualquer “Adeste fideles” (o que em qualquer caso não poderia ter feito porque o texto ainda não existia). E mesmo quando no final do século XVIII começou a haver a moda de atribuir arbitrariamente ao Rei obras anónimas, como o “Crux fidelis” ou o “Adjuva nos”, nunca o “Adeste fideles” foi sequer incluído nestas falsas atribuições.
De onde nasceu então o mito da atribuição a D. João IV? É simples:
4) Nenhuma das várias fontes contemporâneas de D. João IV que enumeram detalhadamente as suas composições refere que ele tenha composto qualquer “Adeste fideles” (o que em qualquer caso não poderia ter feito porque o texto ainda não existia). E mesmo quando no final do século XVIII começou a haver a moda de atribuir arbitrariamente ao Rei obras anónimas, como o “Crux fidelis” ou o “Adjuva nos”, nunca o “Adeste fideles” foi sequer incluído nestas falsas atribuições.
De onde nasceu então o mito da atribuição a D. João IV? É simples:
5)
Ao “Adeste fideles” foi dado o nome de “Portuguese Hymn” em várias
publicações inglesas porque esta composição era cantada na capela da
Embaixada de Portugal em Londres, que até à legalização do culto
católico em Inglaterra, com a promulgação do Roman Catholic Relief Act
de 1829, era um dos únicos locais em que ele podia ser celebrado em
território britânico. Vincent Novello (1781–1861), que foi a partir de
1797 Mestre de Capela e Organista da Capela Portuguesa, publicou em 1811
uma colectânea intitulada A Collection of Sacred Music, as Performed at
the Royal Portuguese Chapel in London que teve depois grande influência
na constituição de um repertório católico inglês, e como “Adeste
fideles” estava nela incluído passou a ser conhecido como o “Hino
Português” e assim se foi divulgando no mundo católico internacional.
Mais tarde seria incluído, numa versão “pseudo-gregoriana”, no próprio
“Liber Usualis” editado na sequência da reforma litúrgica de Pio X, no
início do século XX.
6) A atribuição da obra a D. João IV é, pois, uma fantasia romântica sem qualquer fundamento, cuja origem é hoje impossível de datar com precisão, mas que não é sustentada por nenhum – absolutamente nenhum – dos autores que estudaram a vida e obra de D. João IV, de Joaquim de Vasconcelos e Ernesto Vieira a Mário de Sampaio Ribeiro e Luís de Freitas Branco, o que sugere que tenha surgido já em meados do século XX.
6) A atribuição da obra a D. João IV é, pois, uma fantasia romântica sem qualquer fundamento, cuja origem é hoje impossível de datar com precisão, mas que não é sustentada por nenhum – absolutamente nenhum – dos autores que estudaram a vida e obra de D. João IV, de Joaquim de Vasconcelos e Ernesto Vieira a Mário de Sampaio Ribeiro e Luís de Freitas Branco, o que sugere que tenha surgido já em meados do século XX.
Quem é então o autor do “Adeste fideles”?
7) Não sabemos, pura e simplesmente, mas a natureza da própria música indica que não poderá ter sido composto antes do último quarto do século XVII e mais provavelmente já em inícios do século XVIII. Vincent Novello, quando publica o seu arranjo da obra, atribui-a a John Reading, organista do Winchester College que morreu em 1692, mas a primeira versão escrita que se conhece é de John Francis Wade (1711 – 1786), e sendo Reading protestante e Wade um católico assumido, que se exilou inclusive no Continente por lealdade à causa do Pretendente Stuart, seria mais natural que a Capela da Embaixada Portuguesa adoptasse uma obra sua do que uma da composição de um anglicano.
7) Não sabemos, pura e simplesmente, mas a natureza da própria música indica que não poderá ter sido composto antes do último quarto do século XVII e mais provavelmente já em inícios do século XVIII. Vincent Novello, quando publica o seu arranjo da obra, atribui-a a John Reading, organista do Winchester College que morreu em 1692, mas a primeira versão escrita que se conhece é de John Francis Wade (1711 – 1786), e sendo Reading protestante e Wade um católico assumido, que se exilou inclusive no Continente por lealdade à causa do Pretendente Stuart, seria mais natural que a Capela da Embaixada Portuguesa adoptasse uma obra sua do que uma da composição de um anglicano.
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