A Menina Nua, Avenida dos Aliados, Porto |
Obra de Henrique Araújo Moreira (Avintes, Vila Nova de Gaia, 1890 - 1979)
Chamava-se Aurélia Magalhães Monteiro e era conhecida por Lela,
Lelinha ou pela “Ceguinha do 9” - para a eternidade ficará sempre a ser a
“Menina Nua” da Av. dos Aliados, estátua que toda a cidade conhece e
aprecia.
Nasceu no dia 4 de Dezembro de 1910, na freguesia do
Bonfim e, pouco tempo antes de falecer, dizia-me que “tinha sido uma das
mulheres mais apreciadas e cobiçadas do seu tempo...”. Vivia no
rés-do-chão do Bloco 9 do Bairro da Pasteleira, numa casa simples e
humilde com flores a enfeitarem a entrada e a sala de jantar.
Um dia convidou-me a entrar e contou-me um pouco da história da “Menina Nua”:
- «Tinha 21 anos quando fiz de modelo para o Henrique Moreira, o mestre que fez a estátua: Mais tarde colocaram-me na Avenida dos Aliados - que belos anos aqueles! Estive duas semanas a “posar” e ainda hoje recordo com alegria e saudade aqueles momentos de trabalho, pois posso morrer amanhã que todos ficarão a saber quem era a Lela... Além disso, nessa altura, dava-me bem com os artistas, era bonita e eles convidavam-me. Andava por toda a parte, ganhei uns “cobres” com o Henrique Moreira, mas hoje... Resta-me a consolação de estar ali, de costas voltadas para o Almeida Garrett e de frente para o D. Pedro IV.»
- «Tinha 21 anos quando fiz de modelo para o Henrique Moreira, o mestre que fez a estátua: Mais tarde colocaram-me na Avenida dos Aliados - que belos anos aqueles! Estive duas semanas a “posar” e ainda hoje recordo com alegria e saudade aqueles momentos de trabalho, pois posso morrer amanhã que todos ficarão a saber quem era a Lela... Além disso, nessa altura, dava-me bem com os artistas, era bonita e eles convidavam-me. Andava por toda a parte, ganhei uns “cobres” com o Henrique Moreira, mas hoje... Resta-me a consolação de estar ali, de costas voltadas para o Almeida Garrett e de frente para o D. Pedro IV.»
Perguntei-lhe nessa altura se não tinha havido problemas com a nudez da estátua - por exemplo, proibições, censuras.
Ela respondeu-me:
- «Bem, sabe que naquela época havia certos
sectores que se opunham claramente e até ficaram escandalizados com a
“Menina Nua”. Nós éramos muito tacanhos e veja bem que há 50 anos as
ideias eram realmente diferentes. Havia o Salazar, a Pide e o povo era
mais fechado, mais religioso. Felizmente o mestre Henrique Moreira
conseguiu “levar a água ao seu moinho” e lá fiquei, de pedra e nua,
assim como Deus me botou ao Mundo...»
Sorriu de imediato,
mostrando ainda réstias de um rosto bonito e de uma boca fina, onde já
rareavam os dentes, vítima do peso dos anos e das canseiras e desgraças
da vida. Além disso, imagine uma “moçoila”, no tempo da “outra senhora”,
a expor-se toda nua perante uns homens de tela e pincéis ou bocados de
pedra. Bem... era quase como ser comunista ou mulher da vida.
Prossegui, perguntando-lhe quando e onde tinha começado a
ser modelo. «De qualquer modo, e se a memória não me falha, comecei com o
mestre Teixeira Lopes, na figura-modelo da rainha D. Amélia. Esta
estátua encontra-se atualmente no museu com o mesmo nome, em Vila Nova
de Gaia. Nessa época tinha muita vergonha. Era uma “moçoila” com 18
anos, bem feita e bonita. A minha mãe tinha falecido e fiquei mais tarde
com uma madrasta, de quem por acaso não gostava nada; por isso mudei-me
para o Bonfim, para casa da minha santa avó. Que tempos... Nessa
altura, iniciei-me como modelo nas Belas Artes do Porto e lentamente
fui-me habituando, até que fiquei mais descarada... Depois
passei alguns anos como modelo, andei pelo Norte, pelo Sul e até a
Lourenço Marques (hoje Maputo) eu fui. Fiz de modelo para vários
mestres, entre eles: Acácio Lino, Joaquim Lopes, Dórdio Gomes, Sousa
Caldas, Augusto Gomes, Camarinha e os consagrados Henrique Moreira e
Teixeira Lopes. Além da “Menina Nua”, estou no Buçaco, no Cinema Rivoli,
em Lisboa e em Moçambique... E hoje? Como vê, aqui estou, desde os 43
anos cega, uma vida difícil de adaptação, um mundo escuro, negro.»
Despedi-me dela, tentando consolá-la com frases de
carinho e amizade, mas a vida é um cão que não conhece o dono… Ela
despediu-se (nessa altura), com um bom dia, entrecortado com um sorriso
morgaiato, misto de Ribeira, Bonfim e Pasteleira...
Aurélia
Magalhães Monteiro, a Lela, a Lelinha ou a “Ceguinha do 9”, faleceu no
dia 2 de Junho de 1992, com 82 anos de idade. No entanto, a “Menina Nua”
continua viva, fixa e eterna, ali na Avenida dos Aliados, envolta nos
nevoeiros citadinos, perpétua e ardente, nos dramas e vitórias deste
povo.
Do livro "Pasteleira City", de Raul Simões Pinto – Edições Pé de Cabra – Fevereiro de 1994, citado por Rita Sá Cunha
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